quinta-feira, 6 de maio de 2010

Eu quero fritura, Jamie Oliver!

Em seu novo reality show, o chef best-seller tenta catequizar as crianças, as escolas e os pais da cidade mais obesa dos Estados Unidos. Está difícil.

Food revolution, a revolução da comida. Numa campanha com esse título pretensioso, o jovem chef de cozinha britânico Jamie Oliver desembarcou nos Estados Unidos com a missão de combater um inimigo poderoso: o padrão alimentar rico em gordura e açúcar, responsável pela epidemia de obesidade no país. O campo de batalha escolhido foram escolas de ensino fundamental e médio de Huntington, no Estado de Virgínia Ocidental – a cidade mais obesa do Estado mais obeso do país mais obeso do mundo. Ali, Jamie produziu um reality show de seis episódios, baseado em sua tentativa de mudar a mentalidade de uma cidade inteira às voltas com a dificuldade de emagrecer.

Diante da arma mais poderosa de Jamie, a câmera, o inimigo foi apresentado ao espectador: um sistema de alimentação escolar que serve às crianças quantidades extraordinárias de comida processada, incluindo pizza com queijo pela manhã e uma bebida láctea com teor de açúcar mais alto que dos refrigerantes. Jamie, o herói, finalmente tinha chegado para salvar as criancinhas do perigo. Munido de facas e garfos, instrumentos com que as crianças de até 10 anos não tinham nenhum contato nas refeições escolares, o chef revolucionário parecia preparado para enfrentar todo tipo de resistência. Para vencer sua guerra, bastaria ensinar as merendeiras a cozinhar do zero, a partir de ingredientes frescos no lugar dos processados. Logo todo mundo se convenceria de que sua gastronomia saudável é muito melhor do que aquela porcaria que eles costumavam servir. O que torna a série interessante é que a realidade não se conformou a essa visão heroica.

Logo no primeiro episódio de Food revolution, transmitido em 26 de março pelo canal ABC (no Brasil, o programa será exibido pelo GNT, a partir de agosto), Jamie descobre que seu inimigo é mais forte do que imaginava. As recomendações do Departamento de Agricultura americano, que rege o cardápio nas cozinhas escolares, o obrigam a incluir pão na bandeja todos os dias – mesmo se for servir arroz, que é outra fonte de carboidrato. Um radialista local usa a rádio para criticar a prepotência de Jamie, o forasteiro. As merendeiras resistem às mudanças propostas por causa do custo maior e da trabalheira que dá cozinhar do zero. Ao final do episódio, Jamie, entre lágrimas, chora sua decepção diante da câmera: “Eles não sabem o que eu fiz nos últimos dez anos. Não entendem que estou aqui porque me importo. Quando faço coisas que parecem certas, mágica acontece”.

Na Inglaterra, as crianças alimentadas com a comida de Jamie tiveram melhor desempenho escolar
Por “mágica”, Jamie se refere à mudança em cidades da Inglaterra onde ele sugeriu a mesma reforma nos cardápios escolares. Um estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Social da Universidade de Essex mostrou que os alunos de 11 anos alimentados com a comida de Jamie por pelo menos um ano tiveram melhor desempenho em ciências e inglês, e as faltas por problemas de saúde diminuíram em 15%. Lá, Jamie demonstrou que as refeições antes servidas às crianças tinham menos da metade da dose diária de ferro de uma dieta saudável – e o ferro ajuda a melhorar a concentração.

Tanto lá como nos Estados Unidos, o maior desafio de Jamie é agradar ao paladar infantil. A primeira refeição que Jamie fez para os alunos do jardim de infância de Huntington, sob o olhar descrente da merendeira-chefe, foi parar no lixo. As crianças, acostumadas ao sabor da comida processada, rejeitaram os vegetais frescos e os feijões preparados pelo chef famoso. Numa cena surpreendente do programa, Jamie reúne um grupo de oito pimpolhos na escola de cozinha que montou na cidade e faz com eles um experimento. Desmembra um frango na frente deles, afasta as partes nobres (peito, coxas, asas) e põe a carcaça num processador de alimentos. As crianças fazem cara de nojo enquanto assistem ao processo todo. À pasta cor-de-rosa Jamie acrescenta aditivos em pó e explica que eles servem para dar sabor e melhorar o aspecto do produto final, exatamente como faz a indústria. As crianças continuam enojadas. Jamie corta a mistura em pedaços redondos e põe para fritar. E então pergunta à turminha quem é que ainda comeria a gororoba com aspecto de nuggets. Todas levantam a mão.

Diferentemente de outros heróis, Jamie não tem exatamente o perfil de um revolucionário. Loirinho de olhos azuis, pele branca com sardas e maçãs do rosto rosadas, o britânico de 34 anos não saiu de sua casa na Inglaterra e largou mulher e três filhos para trás para correr perigo na América. Longe de parecer ameaçador, Jamie usa artifícios pacíficos para conseguir o que quer. Primeiro, mostra que tem talento. O chef já faz sucesso internacional há uma década ensinando ao mundo que cozinhar é rápido, prazeroso, fácil e saudável. Segundo, ele não vem sozinho. Além de uma equipe de produção competente, Jamie conta com o apoio de outros ativistas que já trilharam um caminho anterior na briga contra a hegemonia do fast-food e seus efeitos na saúde. E, por fim, Jamie é um fofo. Tanto ao falar com a câmera como quando conversa com gente de qualquer idade ou origem, ele é empático e cativante. Demonstra emoções o tempo todo, chora, admite insegurança. Parece até natural concordar com ele.

Passo a passo, sem perder a paciência nem se indispor com ninguém, Jamie vai ganhando seguidores até formar um exército de gordos e magros disposto a se unir contra a obesidade. Ganha o apoio do radialista rabugento, conquista o interesse de adolescentes problemáticos e até arrecada dinheiro para bancar a revolução nas cozinhas escolares de todo o Estado. Aparentemente, não resta um inimigo forte o bastante para derrotá-lo. A não ser, talvez, o setor de compras responsável pelo fornecimento da comida a todas as 26 escolas de Huntington, que já havia encomendado mais um carregamento de junk food para o próximo ano.

Revista Época, Sociedade, 3/5/2010

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